Autoridades ameaçadas, pessoas investigadas: um grande escândalo que sobe até as instâncias mais altas do poder. Uma teia enorme de atores, contas em redes sociais e campanhas disfarçadas para manipular a opinião pública. Como a democracia pode sobreviver à desinformação eleitoral? Neste episódio, Caio Machado e Letícia Duarte trazem um panorama do problema no contexto brasileiro.

Transcrição

O Brasil vem sendo assolado por uma pandemia grave. E não estou falando do coronavírus. Mas outra doença que também mata. E a principal vítima, como a gente tem visto no Brasil, pode ser a nossa democracia. Autoridades ameaçadas, pessoas investigadas: um grande escândalo que sobe até as instâncias mais altas do poder. Uma teia enorme de atores, contas em redes sociais e campanhas disfarçadas para manipular a opinião pública. Será que a democracia sobreviverá ao uso maléfico da internet?

Hoje a gente começa falando sobre esse mal que tanto vem intoxicando as nossas vidas e as nossas redes sociais. É a chamada infodemia, a pandemia da desinformação. O problema é tão grave que está até catalogado no site da Organização Mundial da Saúde:

"infodemia é uma superabundância de informação, tanto online quanto offline - incluindo tentativas deliberadas de disseminar informações falsas para minar a capacidade de resposta da saúde pública e avançar certas agendas de grupos ou indivíduos." No bug de hoje, vamos explicar como andam as investigações do Supremo Tribunal Federal sobre a disseminação de notícias falsas no Brasil. O chamado Inquérito das Fake News, que recentemente incluiu entre os investigados o Presidente Jair Bolsonaro.

As eleições e urnas eletrônicas viraram um dos alvos preferidos dessa campanha de desinformação. Vem com a gente para entender: o quê afinal há por trás de toda essa discussão sobre a segurança do sistema de votação… Qual a diferença entre os conceitos de fake news e desinformação… E o que há de verdadeiro no meio de tanta notícia falsa.

O capítulo mais recente dessa história foi a inclusão do Bolsonaro no inquérito das Fake news, no começo de agosto. Vamos lembrar como tudo começou? Parece que a cada 15 minutos nós temos uma crise nova no Brasil, então fica difícil acompanhar.

Foi lá no longínquo ano de 2019, naquele tempo que a gente nem sabia o que era coronavírus. Éramos tão jovens. Então, o chamado inquérito das fake news foi aberto em março de 2019 pelo STF. E o objetivo inicial era investigar notícias fraudulentas, ofensas e ameaças a ministros do Supremo Tribunal Federal e seus familiares. Um ano depois, técnicos do STF identificaram 12 perfis em redes sociais que atuavam na disseminação de informações de forma orquestrada contra ministros do tribunal. Entre eles, estavam o blogueiro bolsonarista Allan Santos, do Terça Livre, o empresário Luciano Hang, o dono da Havan.

O - dono - da - Havan e não o dono da Van. São aquelas lojas à beira da estrada com temas super-brasileiros como a estátua da liberdade e uma fachada de pártenon grego. Só que verde e amarelo. Não ataquem o senhorzinho da condução escolar.

Isso. E a ativista Sara Geromini. Aquela que se autodenonima Sara Winter (de inspiração nazista, inclusive) e liderou um grupo de pessoas vestidas de Klu Klux Klan e ficaram acampados na frente do STF, e que depois acabaria presa por incitar e organizar atos antidemocráticos contra o STF.

Lembrando que o KKK é um grupo de supremacistas brancos dos EUA que apoiam a violência contra negros, imigrantes, católicos e homossexuais e outros grupos sociais… até isso importaram do EUA.

É, e por causa disso o STF também abriu uma investigação por atos antidemocráticos. Mas em julho deste ano, como desdobramento dessas investigações iniciais, o ministro Alexandre de Moraes, que é o relator, arquivou o processo inicial e abriu um novo inquérito para investigar "fortes indícios e significativas provas apontando a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento com a nítida finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito". E essa rede inclui parlamentares bolsonaristas, a começar pelos filhos do presidente.

E não por acaso, o Alexandre de Moraes virou um dos alvos preferenciais da militância bolsonarista. Ele tá mexendo no vespeiro. Tivemos ainda aquele caso lastimável do deputado Daniel Silveira que ameaçou sair na porrada com ministros do STF e pedindo um AI-5 - e acabou preso.  

Vamos esclarecer do que a gente está falando, então. O apelido de fake news aqui é um eufemismo para descrever uma turma que está convocando violência, quer ver gente morta e ferida.

Curioso é que essa atividade é recheada de parcerias com membros do governo. Órgão públicos como a Secretaria Especial de Comunicação da Presidência, a famigerada Secom, vem usando dinheiro público para financiar sites e canais que defendem o fechamento do supremo, falsas curas para a pandemia e teorias conspiratórias que soam absurdas até para um filme da Marvel.

O seu dinheiro, ouvinte, está sendo usado para espalhar mentiras e promover rupturas e lucrar com isso. E vamos relembrar: a gente chama de blogueiro e eles se chamam de jornalistas, mas a verdade é que são pessoas que estão empenhando recursos e tempo para ameaçar o funcionamento do país com mentiras e ameaças literais.

A propósito, cabe a gente explicar também aqui a diferença entre a expressão "fake news" e o conceito de desinformação. O próprio inquérito do STF fala em fake news, mas essa foi uma expressão criada pelo presidente americano Donald Trump para atacar jornalistas. Sempre que saía uma notícia desfavorável, o Trump acusava a imprensa de mentir - por isso é uma expressão carregada politicamente, criada originalmente para desacreditar o jornalismo. Por isso muitos pesquisadores preferem usar o termo desinformação, que caracteriza essa disseminação intencional de notícias falsas com fins políticos, como a gente tem visto no Brasil. E no meio disso ainda existe um volume imenso de notícias imprecisas ou distorcidas - e complica um pouco mais o cenário. E isso nos Estados Unidos é chamado de misinformation, que seria a disseminação não intencional de notícias falsas.

E aí a gente chega num outro ponto: a tecnologia da desinformação. É interessante ver todos os casos que foram acumulando ao longo dos últimos anos formar um caldo e culminar em uma acusação. Nós temos pesquisas de 2018 de antes das eleições, inclusive algumas delas eu participei, apontando que a estratégia de comunicação era bastante orquestrada e envolvia recursos para automação, produção e disseminação de conteúdo.

Investigações importantes como a da jornalista Patricia Campos Mello apontaram para o envio de recursos para o exterior para articular o disparo de conteúdo de lá, violando regras das plataformas e operando ao arrepio das leis eleitorais. O TSE inclusive opera uma investigação própria atualmente. A investigação dessas estratégias envolve muito técnicas de seguir o financiamento desses serviços, mas isso nem sempre é fácil. Qual é a diferença entre propaganda eleitoral irregular, usando de um desvio de recursos por indivíduos, e uma pessoa física, rica, querendo  usar de meios próprios para apoiar um candidato? Isso só se discerne caso a caso.

Um estudo do Berkman Center da Universidade de Harvard, intitulado Network Propaganda, faz um mapeamento bem extenso sobre como as campanhas de desinformação foram orquestradas na internet nas eleições de 2016 lá. Um elemento interessante identificado é que, além de existir todo o interesse político por trás da desinformação, há um importante interesse econômico. Há muitas empresas que ganham dinheiro vendendo likes, seguidores, impressões. São empresas especializadas em falsificar os números de engajamento das plataformas. Em períodos eleitorais, essas empresas não são muito orientadas por escrúpulos e decência política - quem aparecer querendo comprar, ele vendem! Então o mercado da desinformação eleitoral se aproveita muito da conivência desse mercado de fazenda de clicks.

Aliás, vou dar o spoiler de que tem pesquisa importante do Vero vindo aí sobre esse assunto! No fim das contas todos nós viramos produtos desse mercado de cliques. E as eleições viraram o próximo campo de batalha. Para a gente recapitular, o Presidente Bolsonaro foi incluído no inquérito que apura a divulgação de informações falsas em agosto. A decisão veio depois de uma transmissão ao vivo em que o presidente alegou ter indícios fortes de fraudes nas últimas eleições. As acusações, porém, eram baseadas em vídeos antigos que circulam na internet e já foram desmentidos pela Justiça Eleitoral e por agências de checagem.

Na decisão, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes cita 11 crimes que, em tese, podem ter sido cometidos por Bolsonaro nos repetidos ataques às urnas e ao sistema eleitoral, incluindo calúnia, difamação, injúria, incitação ao crime, apologia ao crime e associação criminosa.

O argumento do Bolsonaro - ou melhor o factóide que ele fabrica em uma estratégia de criar polarização e distrações - é que as eleições podem ser fraudadas. Por isso ele defende que as urnas eletrônicas deveriam incluir um comprovante impresso do voto, para que os resultados pudessem ser auditados.

Lembrando que ele é a mesma pessoa que diz que houve fraude nas urnas nos EUA, onde o voto não é eletrônico. Mas a verdade é que as atuais urnas eletrônicas já são auditáveis. O Tribunal Superior Eleitoral explica que a urna eletrônica permite a auditoria dos resultados por meio do Boletim de Urna que é impresso ao final da votação na seção eleitoral. Esse documento permite a comparação dos votos computados em cada urna no sistema eletrônico do TSE com os do respectivo boletim.

Inclusive, houve auditoria autorizada em 2018, com o comparecimento de representantes do então partido do presidente e ninguém identificou fraude.

A verdade é o que menos importa para o presidente, porque a narrativa de fraude eleitoral é uma estratégia política. A gente já viu esse filme antes, e é mais um capítulo da saga teorias da conspiração.

Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump apostou na mesma retórica. Aqui, o argumento era de que os votos pelo correio não eram seguros - sendo que o voto pelo correio é uma tradição americana há séculos - (os primeiros registros remontam ao século 17, inclusive) não eram seguros - e que os democratas estavam fraudando o sistema. O problema das teorias da conspiração é que elas funcionam: elas semeiam a dúvida e a desconfiança na cabeça das pessoas. Como não há nada que possa ser provado, porque as acusações se baseiam em meras especulações sem evidências, os conspiracionistas lançam uma série de acusações no ar e jogam a responsabilidade pra torcida, dizendo: "ah, me prove que isso não é verdade então".

É a famosa inversão do ônus da prova que os juristas conhecem tão bem. Usando um artifício retórico, o interlocutor presume que uma afirmação é verdadeira, ao invés de provar o que ele está alegando. Nessa jogada, ele empurra para quem discorda o peso de provar que a alegação é falsa. Por exemplo: Letícia, ETs estiveram na terra ontem, fizeram uma rave no fundo do mar, e depois arrumaram tudo perfeitamente para que os humanos não percebessem. Não acredita? Prova que eu tô errado!

Ninguém consegue provar que é verdadeiro ou falso, por que a gente deveria presumir que é verdade se não há nenhuma razão para isso? Aí vale acreditar até nas coisas mais improváveis…

E quando essa conspiração vem do centro do poder, ela acaba pautando todo o debate público, porque toda a mídia precisa cobrir o assunto e explicar que aquilo é falso. Então, em vez de a gente estar discutindo problemas reais do país e políticas públicas, o Brasil perde tempo e energia discutindo um problema totalmente inventado.

E para o Bolsonaro, assim como o Trump, a narrativa é útil. Serve tanto para inflamar a militância - que tem uma "causa" pra abraçar - quanto pra questionar os resultados eleitorais em caso de derrota nas próximas eleições. O que, aliás, as pesquisas sugerem que é bastante provável, já que Presidente vem perdendo apoio popular.

A gente já viu o quão desastroso foi isso nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio, que deixou cinco pessoas mortas e mais de cem policiais feridos. E no Brasil a gente ainda está a um ano das eleições e o clima de guerra já começou, com militantes bolsonaristas incentivando inclusive a invasão ao STF e ao Congresso. Não aconteceu no 7 de setembro, felizmente, mas essa narrativa golpista é perigosa e está longe do fim.

O risco de ruptura institucional e violência não só existe, como é alto.

A Cambridge Analytica foi apenas a primeira de muitas. O caso mais midiático desse tipo de "empresas de inteligência e propaganda política". Ela teve um adicional de se usar recursos psicométricos, cuja eficácia ainda não foi comprovada, mas que por si só é um absurdo. No caso, a empresa coletou informações muito detalhadas sobre indivíduos para oferecer propagandas muito específicas e direcionadas, visando um perfil psicológico de comportamento e consumo. É um grau de precisão e de coleta que o usuário nem sabia. Imagina os seus gostos musicais, compartilhamento de conteúdo, localização, hábitos de consumo sendo usados - sem que você saiba - para te empurrar o candidato A ou B?

Fazendo outro jabázinho, no Instituto Vero nós produzimos pesquisas, participamos de audiências públicas e promovemos educação de mídia justamente para melhorar a qualidade da nossa esfera pública digital - porque nós acreditamos que tá aí a resposta. E não custa lembrar: redobre a vigilância para não repassar conteúdo falso. E quando for comentar algo no twitter, por exemplo, não replique o conteúdo original com informações falsas - isso ajuda a dar mais alcance e audiência pra quem não merece.

Aliás, uma pesquisa recente da New York University analisou a difusão de informações falsas no Facebook entre agosto de 2020 e janeiro de 2021. A conclusão foi que sites de notícias conhecidos por divulgar informações incorretas obtiveram seis vezes mais curtidas, compartilhamentos e interações no Facebook do que fontes de notícias confiáveis, como a CNN ou a Organização Mundial da Saúde. Ou seja: existe um problema de algoritmo aí também - e as plataformas têm responsabilidade de tomar providências. O trágico, neste caso, é que pesquisadores do estudo acabaram tendo suas contas bloqueadas pelo Facebook, que alegou acesso indevido a dados confidenciais. Acho que isso exemplifica bem o estado das coisas.

A desinformação é um sintoma dessa nossa realidade em rede. Enquanto a sociedade não aprende como se livrar dela, o negócio é resistir à tentação dos caça-cliques para não alimentar o surto coletivo.

Algumas notícias quentes sobre temas abordados nos episódios anteriores. A Apple descobriu um novo malware criado para hackear iphones. Ele foi desenvolvido pelo NSO Group, a companhia israelense que inventou o software de espionagem Pegasus, tema do nosso episódio 5. A invasão ocorre pelo aplicativo iMessage, nativo do celular. Na segunda-feira dia 13/09, a Apple soltou uma atualização para barrar esses ataques no iPhone.

Lembram do nosso episódio número 2, sobre o projeto de Bolsonaro para proibir a remoção de conteúdo falso? Como esperado, aconteceu. Na véspera do dia 7 de setembro, o presidente publicou uma medida provisória para impedir as plataformas de removerem conteúdos falsos e discurso de ódio, sob o pretexto de proteger a liberdade de expressão.

A boa notícia é que essa MP, apelidada de MP das Fake News, foi devolvida pelo Presidente do Senado Rodrigo Pacheco e no mesmo dia suspendida pela Ministra Rosa Weber. As medidas impuseram uma derrota importante ao presidente que visava blindar campanhas de desinformação e mobilização violentas. No site do Vero você encontra mais informações sobre isso - e pra quem perdeu o episódio vale conferir pra entender o que está em jogo.