PODCAST BUG DO MILÊNIO

Liberdade de expressão (ou crime?)

Direitos

A liberdade de expressão sem limites vira crime. Mas onde traçar a linha que separa o que pode e o que não pode ser dito? Essa discussão tomou a internet no último mês, por conta de comentários de um podcaster brasileiro. Muitas perguntas, muita provocação, mas poucas respostas concretas. Por isso, cá estamos encontrar os caroços desse angu que é a liberdade de expressão. Vem escutar no novo episódio do podcast Bug do Milênio, apresentado pelo advogado Caio Machado e a jornalista Letícia Duarte.

Transcrição

Você já reparou que todo dia tem alguém nas redes sociais invocando a liberdade de expressão para justificar alguma aberração? É tanta gente se dizendo censurada no Brasil ultimamente que às vezes a gente fica até tonto, e parece difícil às vezes separar o que é sério do que não é. 

A coisa tá tão tensa que tem gente até defendendo seu direito de espalhar posições racistas em nome da suposta liberdade de opinião.

Tem argumento pra tudo mesmo. Tanta gente se dizendo "censurada", e haja textão e treta nas redes. E aí volta aquela velha pergunta: onde termina a liberdade de expressão e começa a censura? E para encontrar a resposta a gente tem que entender que existe algo mais profundo por trás disso tudo: um jogo político de estratégia que, de um jeito ou de outro, envolve todos nós.

Bem-vindos ao BUG DO MILÊNIO, o podcast do Instituto Vero. Esse é um manual alternativo da internet. Aqui, vamos entender como a tecnologia está mudando a sociedade… e como impedir a revolução das máquinas!

Eu sou Caio Machado, Diretor do Instituto Vero… E eu sou a Leticia Duarte, jornalista radicada nos Estados Unidos. 

No episódio de hoje, vamos discutir o que tá pegando aí no reino da tão falada liberdade de expressão. Estamos mesmo diante de um surto de censura generalizada? Ou a liberdade virou uma bandeira pra justificar discursos de ódio e desinformação? 

Parece simples, mas em tempos de tanta polarização política e tanta treta na internet, até o Direito vem sendo confrontado com novas interpretações sobre esses conceitos. Por isso, como sempre, o Bug tá aqui para acabar com seus problemas! Vamos conversar (sem juridiquês) sobre tudo isso e lembrar alguns casos recentes que deram o que falar.  

E ainda tão dando, né? haha. Bora lá. 

E aí, por onde a gente começa? Pelo fim ou pelo começo? Acho que podemos começar com uma treta, né. 

Tretas têm preferência! Bom, começando com a treta mais recente, então  - que vale como um caso emblemático pra gente discutir os limites da liberdade de expressão. Vocês devem ter acompanhado as notícias envolvendo o Monark, que é uma figura popular na internet e apresentador de um dos  podcasts mais populares do país.

Ele começou uma discussão no Twitter em defesa da liberdade de expressão que levou muita gente a protestar - e por causa disso acabou até perdendo um patrocínio do programa dele.

O ponto central do argumento dele é que todo mundo tem direito de dizer o que quiser. Ele chegou ao cúmulo de falar que os “lacradores” agiam como "fascistas" porque não deixavam os outros se defenderem. Ele inclusive ficou indignado com o vídeo do presidente ter sido retirado do YouTube devido à (mais uma) mentira sobre vacinas anunciada durante a sua live. Ele disse que era uma restrição à liberdade de expressão, pois, para ele, liberdade é irrestrita mesmo que prejudique alguns setores ou pessoas (... ou todo mundo). Mesmo que fosse uma mentira deliberada.

O auge de toda essa confusão chegou quando o podcaster se atrapalhou feio no Twitter. Depois de ser questionado por um advogado sobre os limites da liberdade de expressão, como o racismo, o Monark lançou a seguinte pergunta: "Ter uma opinião racista é crime?" 

A parte que eu achei mais bizarra foi o que ele falou depois pra justificar o posicionamento dele sobre o direito de ter opiniões racistas. Ele disse que, nos Estados Unidos, até o movimento negro havia lutado no passado para garantir que a Klu Klux Klan tivesse direito de se expressar livremente - o que é obviamente uma mentira. O movimento negro era vítima desse movimento racista e supremacista, que queimava bonecos de pessoas negras simbolizando suas crenças. Por isso o movimento negor lutava contra essas manifestações do KKK. Mas o Monark usou isso como justificativa - e aí quando foi questionado nas redes sobre a fonte da informação, ele colocou um link da Wikipedia que não tinha nada a ver com o que ele havia escrito.

Ou seja, totalmente disseminando desinformações provenientes da fonte “vozes da minha cabeça” e da “minha mente nem sempre tão lúcida e fértil” (Charlie Brown). Olha, a moral da história é que liberdade de expressão não justifica abusos e crimes. Por exemplo, na nossa sociedade, o genocídio é algo que vai de contra a nossa ética. 

Os limites, senhoras e senhores, são os direitos de cada pessoa: direito à vida, direito à saúde, liberdade de expressão. Os tão famosos e maltratados direitos humanos. Porque eles são a regra mínima que não pode ser violada. Caso contrário, não tem mais  o mínimo para o convívio social. É uma liberdade, mas não é irrestrita, porque aí começa a avançar na liberdade dos outros.

O fato é que, apesar de muitos comentários xingando ou defendendo, muita gente ainda não entende o porquê isso não é liberdade de expressão. Esse tipo de bafafá acaba gerando engajamento e deixa os personagens ainda mais famosinho. Aliás, vale lembrar daquele outro caso, do jogar Mauricio Souza, que também repercutiu bastante quando ele fez comentários homofóbicos ao comentar a nova identidade bissexual do superman.

Inclusive, o ep. 138 do Resumido, podcast parceiro, aborda também sobre isso, recomendamos. E ainda sobre o caso Maurício Souza: é bizarro que as pessoas queiram controlar até a sexualidade de figuras da ficção!

O ponto é que, diante desse contexto atual de disputas políticas e extremismos, a liberdade de expressão vem sendo cada vez mais distorcida. Como nós temos visto um verdadeiro retrocesso no pensamento e nas instituições democráticas, esse tipo de manifestação segue sem muita limitação,  sem resposta das autoridades, sem punição… o que deixa as pessoas a sem referencial do que cabe ou não cabe dizer em público.

Um ponto importante é que a internet ampliou muito a visibilidade pra todo mundo falar o que pensa. Então, por exemplo, aquilo que alguém falava às 3h da manhã, lá numa mesa de bar, entre seus amigos, agora pode ser o novo viral das redes. E muita gente acaba perdendo a vergonha de falar coisas absurdas ou polêmicas - porque é esse o conteúdo que gera mais engajamento nas redes. Então, se você quiser ser popular, quanto mais absurdo for o seu comentário, mais interação vai provocar. 

E isso não se restringe a usuários comuns, figuras públicas também estão aderindo a esses discursos de ódio e fazendo coro a toda essa audiência que defende a intolerância. E aí é onde entra a chamada liberdade de expressão: muitas dessas manifestações são tipificadas pelo nosso Código Penal (ou seja, em português simples: proibidas em lei)  e também são contrárias a tratados internacionais do qual o Brasil é signatário, como as cartas internacionais de direitos humanos.

Uma forma de abuso à liberdade de expressão são as famosas fake news que espalham mentiras e podem causar danos à saúde pública, como a gente tem visto durante a pandemia. 

E aí, quando tudo está tão radicalizado, nós sempre temos que ficar voltando para revisar e refletir sobre coisas que já eram consensuais - pois essas pessoas começam a questionar acordos já feitos na nossa sociedade. Todos esses direitos já são algo concreto na nossa democracia, mas precisamos nos questionar se existem ou deveriam existir limitações claras e objetivas às liberdades de expressão. 

Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que o Brasil adota, “todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. 

Essa declaração foi e continua sendo importantíssima para a nossa sociedade, porque todo mundo tem o direito de se expressar. Mas ela também deixou algumas brechas que poderiam dar margem a interpretações diferentes. Por exemplo, ela não deixa claro o que acontece quando direitos de coletividades são atacados -  por exemplo quando atacam uma raça ou religião.  Que, aliás, é que os extremistas vêm atacando, por exemplo quando atacam negros, judeus, índios, etc. Para resolver esse "furo" na lei, veio o chamado Pacto de San José da Costa Rica, em 1969, que estabeleceu melhor as restrições nesse caso.

Basicamente, ele botou ordem na casa já que, em seu artigo 13, afirmou que, em referência ao artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores. Em outras palavras, mais fáceis, “beleza, você pode falar o que quiser, mas, dependendo do que for, querido, você vai ser responsabilizado e punido”. 

A famosa lei do "aqui se faz, aqui se paga!". Ninguém pode botar uma mordaça na nossa boca e nos impedir de falar algo, se quisermos falar algo, falamos. O negócio é que, depois que falou, se prepare para a ver a chinela cantar e sofrer as consequências se isso for um abuso da liberdade de expressão. 

Uma das melhores falas sobre isso, que resume toda essa questão, na minha opinião, foi um discurso recente da Angela Merkel. Ela disse o seguinte:

“Temos liberdade de expressão em nosso país. Para todos os que afirmam que não podem mais expressar sua opinião, digo-lhes: quem expressa a sua opinião tem que estar preparado para a possibilidade do contraditório e para assumir as consequências do que diz. Expressar uma opinião não tem custo zero. A liberdade de expressão tem seus limites. Esses limites começam onde o ódio se espalha. Ela começa onde a dignidade de outras pessoas é violada".

Falou tudo. E o que seriam esses abusos? São "opiniões" que agridem os direitos ou das demais pessoas  (o que inclui a reputação delas), ou falas que colocam em risco a segurança nacional  ou a saúde pública -  enfim, que ameaçam os direitos de grupos ou pessoas! Ou seja: falou algo contra a vacinação da COVID-19? Está colocando em risco a saúde de  210 milhões de brasileiro? Então pode e deve ser penalizado. E a fala precisa ser tirada do ar.

Aliás, vale dizer que em muitos casos a gente está muito confortável com a censura prévia: por exemplo quando alguem coloca uma imagem do estado islâmico executando uma pessoa e o Facebook impede o upload. Ou mesmo imagens de pornografia ilegal. Isso não é liberdade de expressão e todo mundo está muito tranquilo em impedir  a circulação do conteúdo de forma automatizada.

Bom senso é que nem gosto… cada um tem o seu, mas tem gente que não tem. E daí migramos para a nossa Constituição Federal de 1988: no seu artigo 5º, protege à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. A manifestação do pensamento. Garante também a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político. Em outras palavras, nenhum direito pode violar ou desrespeitar esses fundamentos.

Assim, pelas regras, não tá valendo promover ações ou discursos deliberadamente inconstitucionais. Então não vale jogar a carta da liberdade de expressão, se eles violam alguma dessas prerrogativas -  por exemplo,  dizendo que negro não deveria votar.

De novo, a liberdade de expressão não é irrestrita, as pessoas precisam compreender isso, ela tem limites que podem, sim, fazer você pagar por “apenas” ter falado bem do nazismo, por exemplo.

Aliás, vocês viram o vídeo de um apoiador do presidente sugerindo que ele implantasse o modelo de Hitler nas escolas, para ajudar na formação moral das crianças? E o presidente não o reprimiu. Deu a entender que não conseguiria fazer essas mudanças por causa da burocracia.

Sim. Impressionante como a gente cai em Hitler tão rápido quando tratamos desse assunto. Mas voltando pra questão da liberdade de expressão: a questão é que esses limites às vezes são meio turvos e precisam ser analisados caso a caso, para a gente poder riscar a linha no chão e dizer até onde pode ir. Aí entra a importância da garantia de uma educação cidadã em direitos humanos e a leitura crítica da sociedade para compreender até onde a sua liberdade de expressão pode chegar…  outra coisa  que vem sofrendo ultimamente.

E tem um outro ponto que eu acho que a gente precisa prestar atenção: toda essa onda em defesa da liberdade de expressão tem crescido no Brasil de forma coordenada. Se você observar, isso vem sendo disseminado principalmente pela extrema-direita no Brasil. Muitos apoiadores do presidente, por exemplo, se dizem vítimas de censura nas redes. E culpam as grandes plataformas, as big techs, dizendo que elas estão censurando os conservadores. E tudo isso como uma resposta à atuação das plataformas, que depois de muita pressão da sociedade e de vários escândalos políticos, começaram a prestar mais atenção nas campanhas de desinformação nas redes e estão removendo mais conteúdos. Basicamente, essas pessoas começaram a usar o bordão da liberdade de expressão pra defender seu suposto direito de espalhar mentiras e discursos de ódio. Ou seja, não é um movimento espontâneo. E é uma campanha política tentando distorcer as coisas. E isso tem consequências graves pra nossa sociedade.

É isso, a gente tem que olhar a moderação de conteúdo com um pouco mais de nuance. Ela ajuda a fazer uma limpeza geral dessas falas que agridem outras pessoas. Caso contrário, o ambiente fica inabitável. Dá pra pensar nisso até como  parte da liberdade de expressão. Não só você tem o direito de falar, como eu tenho o direito de ouvir o que você tá falando. Se tem uma avalanche de pessoas me xingando ou me atacando, eu não consigo ficar nesse espaço e a gente não consegue ouvir.

Pois é, e aí o grande enigma é como lidar com tudo isso. Acho que uma coisa que ajuda é adotar aqueles famosos silêncios estratégicos. Quando a gente vê alguém espalhando conteúdo ilegal ou escandaloso nas redes, melhor não interagir pra não amplificar o conteúdo. Tem gente que vive de repercussão, essa é a verdade. É aquela famosa frase “fale mal ou fale bem, mas falem de mim”. E aí vale aquela famosa dica: “stop making stupid people famous” (pare de tornar pessoas estúpidas famosas, em português). Quando ficamos repercutindo os conteúdos, criamos ainda mais engajamento para os caras.

Mas também existe outro ponto: que esses crimes não podem nem devem ficar impunes. Então só ignorar não adianta. A questão é como resolver isso. Em vez de alimentar as tretas e dar mais audiência para quem espalha discursos de ódio e desinformação, precisamos criar espaços mais saudáveis de reflexão. Serviços de checagem, por exemplo, fazem um bom trabalho ao desmascarar várias mentiras que são espalhadas. E outro ponto importante é exatamente a remoção desses conteúdos tóxicos da rede, algo que as plataformas começaram a fazer - mas ainda de modo bem aquém do necessário.

Precisamos sempre pensar para quem estamos dando palco. Acho que um exemplo muito claro disso são os terraplanistas. Os terraplanistas são uns gatos pingados ao redor do mundo - comparado com aqueles que não estão delirando e sabem que a terra é redonda. E olha onde eles estão agora. Tem coisa de terraplanista em todo canto.

Muitos acham que expor essas pessoas, seria uma forma de “fazer a pessoa passar vergonha para que ela nunca mais faça isso”. Mas gente, eles não sentem vergonha porque eles já estão publicando essas coisas absurdas. E tem algo a mais aí: essas mitadas também viraram uma forma de alavancar a audiência. Quanto mais bizarra a teoria, mais seguidores a pessoa ganha. Então não dá pra ficar nessa lógica binária, é preciso pensar em novas soluções.

Isso me lembrou até um tweet de uma menina que disse que pegou um Uber antivacina. No fim da corrida, o motorista já tava indo se vacinar! Sabe o que ela fez? Ela basicamente fingiu que era uma radical arrependida e também era conta a vacina, mas que virou a casaca porque descobriu que tudo era fake news. Ela achou um jeito “educativo” que fez o cara repensar sobre os posicionamentos dele. O importante é que no final, temos mais um vacinado no brasil, protegendo a si e a nós.

Que lindo! Eu acredito muito nisso. A gente não vai acabar com os discursos de ódio com mais ódio. Precisamos pensar em como reconectar a sociedade, como enxergar aquele outro, mesmo que pense tão diferente da gente, como outro ser humano. E aí temos chance de conversar - e quem sabe até trazer pra luz alguma alma que se perdeu nas trevas desse caos programado.